"1677, Old Road Town.
Não o sabe o corpo, que pouco sabe, nem o sabe a alma que respira, mas sabe-o a alma que sonha, que é a que mais sabe: o negro que se mata na América ressuscita em África. Muitos escravos desta ilha de Saint Kitts deixam-se morrer negando-se a comer ou comendo não mais do que terra, cinza e cal; e outros atam-se uma corda ao pescoço. Nos bosques, entre as lianas que pendem dos grandes salgueiros-chorões, pendem escravos que não somente matam, ao matarem-se, a sua memória de dores; ao matarem-se também iniciam, em branca canoa, a viagem de regresso às terras de origem.
Um tal Bouriau, dono de plantações, anda na folhagem, machadinho na mão, decapitando enforcados:
– Pendurem-se, se quiserem! – adverte os vivos. – Lá nos vossos países não terão cabeça nem poderão ver, nem ouvir, nem falar, nem comer!
E outro proprietário, o mayor Crips, o mais duro castigador de homens, entra pelo bosque com uma carreta carregada de caldeiras de açúcar e peças de moinhos. Busca e encontra os seus escravos fugidos, que se reuniram e estão atando nós e escolhendo ramos, e diz-lhes:
– Continuem, continuem. Eu me enforcarei com vocês. Vou acompanhá-los. Comprei em África um grande engenho de açúcar, e lá vocês trabalharão para mim.
O mayor Crips escolhe a árvore maior, uma ceiba imensa; enlaça a corda à volta do seu próprio pescoço e enfia o nó corrediço. Os negros olham para ele, aturdidos, mas a sua cara é uma pura sombra por baixo do chapéu de palha, sombra que diz:
– Vamos, todos! Depressa! Preciso de braços na Guiné!"
Eduardo Galeano, Memória do Fogo – Os Nascimentos (tradução de António Marques; no prelo)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário