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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Três editores com eles (os livros) no sítio


Três recomendações a quem achar que o Verão é uma boa altura para ir ao baú procurar livros mais ou menos raros a preço aceitável. No caso, livros sobre editores. Mais rigorosamente, uma revista e dois livros que evocam as carreiras de três editores franceses dos anos 50 e 60 do século passado, que, juntos, devem ter somado o maior número de acusações e casos célebres em tribunais franceses em dois séculos, e cujos catálogos reunidos são a pedra de toque de uma certa ideia de editar "à margem" com qualidade.
Do fundo do baú chega o número 4 da revista Olympia (1963), publicada no auge da actividade da editora do mesmo nome dirigida por Maurice Girodias. Para quem conhece os livros da Olympia e a sua aversão "estratégica" à imagem (já tinham problemas que chegassem com os textos publicados...), a revista é uma bela surpresa em termos gráficos, a começar pela excelente capa. Publicada integralmente em inglês, tal como todos os livros da Olympia Press, este número contém longos excertos de obras publicadas pela editora, com destaque para o excerto de The ticket that exploded de William Burroughs, autor descoberto por Girodias, poucos anos depois de lançar Lolita de Nabokov. (Sobre este editor e a sua Olympia, ir aqui).
Também não muito fácil de encontrar mas de preço acessível é La legende du Terrain Vague, publicada por Le Dernier Terrain Vague em 1977. Eric Losfeld tinha lançado nesse ano a sua autobiografia, apropriadamente entitulada Endetté comme une mule, livro hoje muito difícil de encontrar, mas este volume serve como introdução à actividade de um dos mais incómodos editores da década de 1960, frequentador assíduo dos tribunais, que acabaram por levá-lo à ruína. Faltando-lhe a "voz" de Losfeld, que morreria dois anos depois, e minado por uma excessiva profusão de depoimentos de valor variável, o livro é, ainda assim, testemunha de uma carreira notável na produção de livros, em que a qualidade visual estava ao mesmo nível dos textos, quando não se lhes sobrepunha muitas vezes, uma marca das edições do Terrain Vague e depois das que ostentavam o nome do próprio editor ao longo dos anos e efeito da sua longa convivência com os surrealistas.
Mais acessível, e de uma importância vital para se conhecer o mundo da edição em França no pós-Guerra, é La traversée du livre (2004, ed. Viviane Hamy), a autobiografia de Jean-Jacques Pauvert, o homem cujas edições d' A História de O e do Marquês de Sade fizeram dele o "inimigo público número um" para os tribunais franceses durante uns anos. Repleto de informações técnicas preciosas, de excertos de documentos, de "retratos" notáveis de escritores e artistas (e de outros editores, nomeadamente Girodias e Losfeld, com retratos implacáveis e inesquecíveis) e muito bem ilustrado, este é um livro modelo para quem quer aprender com a vida e a experiência de um editor. A marca de "sobrevivente" de que Pauvert é um símbolo (sobretudo se comparado com esses gloriosos "perdedores" que foram Losfeld e Girodias) é um dos valores acrescidos a este texto.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Férias com Feltrinelli e Girodias: uma sugestão


Descobri que livros sobre editores (note-se: não sobre edição), memórias ou biografias ou monografias sobre casas editoriais, são viciantes. Por mais monótona e padronizada que possa parecer a actividade vista de fora, há sempre surpresas escondidas nestas páginas, e raramente derivam do que se possa esperar, ou seja, do brilhantismo e excentricidade dos "autores": são os próprios biografados que surgem, mesmo sem grande esforço dos biógrafos, e apenas pela força dos factos, como figuras extraordinárias.
É o caso destas duas sugestões de leitura, dois livros que comprei ao desbarato no ebay (fora os portes, o conjunto ficou por 2 USD, ou seja, perto de 1.40 EUR) e que são uma porta inesperada para duas histórias de edição que desconhecia em detalhe (Girodias) e na totalidade (Feltrinelli).

Que a história da Olympia Press de Maurice Girodias era curiosa, já o sabia: foi, afinal de contas, o único editor com coragem suficiente para avançar com a primeira publicação de Lolita de Vladimir Nabokov em 1955. Acontece que este The Good Ship Venus de John St. Jorre (sim, o nome do autor é mesmo este; não se trata de um dos famosos noms de plume do catálogo da Olympia), publicado pela Pimlico, revela uma das mais incríveis odisseias na história da edição, a de uma casa sediada em Paris que publicava em inglês (na senda da Obelisk do seu pai, Jack Kahane, e da Shakespeare & Company de Sylvia Beach), que, para a maioria, não passava da editora de dirty books mais famosa ou infame (o termo parece ter sido inventado e usado com gosto pelo próprio Girodias, talvez antecipando o seu uso pelos juízes), mas que, à custa do dinheiro ganho com esse nicho, publicou, além de Lolita, os romances de Samuel Beckett, Naked Lunch de William Burroughs, The Ginger Man de J.P. Donleavy, Candy de Terry Southern, e a 1.ª edição em inglês da Story of O de Pauline Reage (e se querem saber quem foi ela realmente, este é o livro certo), para não falar de obras de Henry Miller e Lawrence Durrell. Os capítulos sobre a publicação de Lolita, Naked Luch e Ginger Man valem o peso em ouro (e Nabokov não sai muito bem na fotografia final). St. Jorre está visivelmente fascinado pelo seu "herói" mas isto não é uma hagiografia: recorrendo a uma documentação extensa, cria uma polifonia de vozes antagónicas que dá uma imagem ricamente texturada de um editor relutante no pagamento de royalties e traduções, que passou metade da vida em tribunal (e que, notoriamente, retirava algum prazer disso), e que perdeu a sua editora precisamente num tribunal (os detalhes só lidos mesmo: contados não se acredita...). Quanto aos dirty books propriamente ditos, publicados na série Traveller's Companion de discreta capa verde? Nos seus autores (sob pseudónimo) havia nomes depois famosos como Alexander Trocchi ou Norman Rubington, mas havia também turistas americanas em dificuldade financeira, homens de negócios ingleses, jovens escritores desconhecidos em busca de sustento e até uma jovem paquistanesa cosmopolita, descrita por Girodias assim:

"She always wore flowing silk saris, her hair, thick and braided, had never been cut or coiffed, she was modest, beautiful, patient, polite and draped in veils as she handed us the not-so-innocent product of her cultivated mind. She was, in every way, what my father and I had dreamed a pornographer should be." (p. 58)

Se a história de Girodias é a de um dandy libertino e culto, que prosperou enquanto as leis censórias não foram abolidas em Inglaterra e nos EUA, e que sabia reconhecer e lutar por um bom livro quando o encontrava, a história de Giangiacomo Feltrinelli (Harcourt) é, apesar de explicável pelas contingências culturais da sua época (os anos de 1960 e o pós-1968), talvez a mais radical história da edição do século XX, a de um homem que viveu para o culto e a difusão da palavra impressa e que a certo ponto achou que a palavra não chegava e se preparou para a acção (poder-se-ia traçar um paralelo com o trajecto de Mishima).
Os factos são, por si, espantosos: herdeiro de uma fortuna considerável, Feltrinelli cria a sua casa editorial nos anos de 1950 e no final da década comete a proeza do século: clandestinamente, vai à Rússia resgatar o manuscrito de Dr. Jivago (mas não o seu autor) e, por acordo com Pasternak, torna-se o detentor dos direitos mundiais deste romance. Podem fazer as contas. Anos depois, após o pico da Crise dos Mísseis, está em Havana para assegurar os direitos das memórias de Fidel Castro, o que lhe garante, em 1967, acesso ao inner circle dos rebeldes na selva boliviana (Feltrinelli chega a estar preso em La Paz) , e os direitos mundiais (assegurados pessoalmente por Castro) do Diário de Che Guevara. Podem de novo fazer as contas. Milionário, cada vez mais bem sucedido como editor, ele volta da sua última estada em Cuba um homem diferente: já não é o editor, porque descobre que os livros não terão nunca a força das armas. Com uma amante a quem conta pouca coisa, faz um périplo secreto por África e procura aliados, e, em Itália, radicaliza gradualmente a sua posição política (chega a planear a sublevação da Sardenha, "uma Cuba mediterrânica"). Entra na clandestinidade e desaparece. A 14 de Março de 1972 é encontrado morto junto a um engenho explosivo que teria tentado colocar num posto de transformação eléctrica perto de Milão: os "anos de chumbo" tinham chegado.
Escrito pelo filho Carlo, poderíamos mais uma vez pensar estarmos perante um relato hiperemotivo e factual e analiticamente débil. Erro: Carlo é de uma candura e uma frieza extrema, referindo-se ao seu pai sem o uso do possessivo e procurando dá-lo a conhecer através de documentos escritos e depoimentos de terceiros (os episódios cubanos e latino-americanos são, como é óbvio, absolutamente preciosos, criando uma imagem vívida dos anos cruciais do século XX).

Dois livros sobre um certo tipo de editores cujo molde se perdeu há muito, e que são um refrescante antídoto da actual obsessão com a edição "profissionalizada" e gerida em holdings por "CEOs".
(PM)