quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Prosa bancária

Duas linhas de texto que representam, na sua simplicidade, todo um sistema financeiro, toda uma era. Podem ser encontradas em qualquer modesto extracto bancário, sejam quais forem os montantes neles descritos, o que prova que a genialidade é também generosa e está, como dizem os que acreditam em Deus, em todas as coisas, sobretudo nas mais pequenas.
Numa linha o leitor incauto encontrará estas palavras: "comissão de manutenção de conta", no fim da qual um certo valor numérico é apresentado como tendo sido, digamos, subtraído às suas posses. Não refeito desse encontro fortuito, o leitor deparará logo com outra linha abaixo, que o informa – com a mesma firmeza e naturalidade com que Moisés comunicou os mandamentos divinos ao seu povo – de que um "selo sobre a comissão de manutenção de conta" foi aplicado (talvez feito de lacre, áulica substância!), sendo que também no final dessa linha um valor se apresenta como debitado.
Os deuses estão, de facto, nas pequenas coisas.
(PM)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ainda 2009



A última Os Meus Livros (Janeiro de 2010), para além das suas escolhas dos "melhores" livros publicados em 2009, quis recordar 9 capas publicadas no ano passado e que, na opinião da equipa, merecem ser lembradas. A escolha é certamente discutível (o número pecará talvez por defeito: houve mais capas memoráveis em 2009), mas, apesar de apontarmos o facto de que a reprodução das capas deveria ser acompanhada do nome da editora e do(s) designer(s) responsáveis, não será por isso que deixaremos de agradecer a simpática inclusão da capa de BURACOS NEGROS de Lázaro Covadlo nesse lote de 9 capas "impossíveis de esquecer".

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

50 anos da morte de um guarda-redes

"Em 1930, Albert Camus era o São Pedro que guardava os portões da baliza da equipa da Universidade de Argel. Tinha-se acostumado a jogar como guarda-redes desde criança, porque esse era o posto em que menos se gastavam os sapatos.
Filho de casa pobre, Camus não podia dar-se ao luxo de correr pelos campos de jogo: todas as noites, a avó fazia uma inspecção às solas dos seus sapatos e dava-lhe uma tareia se as visse gastas.
Durante os seus anos de guarda-redes, Camus aprendeu muitas coisas:
– Aprendi que a bola nunca vem até nós por onde a esperamos. Isso ajudou-me durante a vida, sobretudo nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser propriamente rectas.
Também aprendeu a ganhar sem se sentir um Deus e a perder sem se sentir lixo, difíceis sabedorias, e aprendeu alguns dos mistérios da alma humana, em cujos labirintos soube penetrar depois, numa perigosa viagem, ao longo da sua obra."
(Eduardo Galeano, FUTEBOL:SOL E SOMBRA)