sábado, 28 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #9

Antes da sua travessia pelo deserto, Silas Rodgers tinha publicado uma dúzia de crónicas e alguns ensaios menores. Talvez se lembrem de certas obras daquele período, sobretudo Xeque a Malaquias e O Relatório Netchaiev. Dizia-se que a sua prosa estava influenciada por Grannet e, especialmente, por Barragonostegui: “Folhas murchas que a terra absorverá; de tal lodo nova vida surgirá. Assim o nosso herói renasce das suas derrotas e empreende uma nova batalha”. Todavia, não teriam sido estes os que empurraram a sua caminhada para o deserto, antes, e mais provavelmente, Sodolt, Gurdjieff, e o Nietzsche de Assim Falou Zaratustra.

Em 1938, na madrugada de 6 de Janeiro, Silas Rodgers, farto dos ataques a que era submetido pela sociedade bem pensante e das críticas à sua forma de vida, partiu de S. Francisco em direcção ao Leste. Levava consigo as suas sete mulheres e os dezasseis filhos e filhas, netos e netas. Silas explicou à sua extensa família que se tratava de um safari espiritual: quando o grupo estivesse instalado no deserto, num local solitário, atrairia novos seguidores, assim como o vazio é codiciosamente cheio pelos elementos que o rodeiam. Até àquele momento, Silas Rodgers nunca tinha tido outros adeptos senão aqueles a quem estava ligado pelo sangue. O grupo viajava em seis carroções, cada um puxado por cinco cavalos. A caravana avançou durante três meses e finalmente deteve-se numa planície deserta entre o Nevada e o Utah. A ausência de vida era a maior imposição da paisagem: só areia e cactos e umas poucas matas de espinheiras; lagartixas, serpentes, escorpiões e ratos da noite, tristes e diminutos. “Aqui levantaremos o nosso reino”, ditou Silas Rodgers. Quando os seus quiseram saber o que comeriam, proclamou:

– A vida alimenta-se da vida: os cavalos, para começar, serão o nosso primeiro sustento, pois já não sairemos daqui até que nos venha buscar o nosso Prometido, o nosso Grã Senhor, que nos trará o futuro no seu carro de fogo. Entretanto, a nutritiva carne e o sangue dos cavalos alimentará os nossos corpos, que são as moradas das nossas almas imortais; desse modo, também os animais alcançarão a sua ração de glória no seio da Mente eterna.

Os seus filhos e mulheres escutavam Silas Rodgers com devota atenção, mas nem por isso compreendiam o significado das suas frases, embora tal inconveniente carecesse de importância: em mais de uma ocasião Silas Rodgers disse-lhes que a compreensão é supérflua. Seria sempre melhor que se mantivessem iluminados pela inocência, alheios a todo o entendimento. Muitas vezes advertiu contra qualquer especulação mental. O pensamento é a mãe de todas as dúvidas. Só a fé é útil.

– De qualquer maneira, uma vez que por aqui não há pastos, os equídeos não poderiam sobreviver. Mas como entrarão nos nossos corpos evitando que o sol os engula, continuarão vivendo dentro das nossas vidas.


("Herren Krisna, Fisher Kampf, Golden Raviolli", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

Buraco Negro #8

Quando fez dezoito anos foi à polícia e disse que se queria inscrever na instituição. Deram-lhe uns impressos para preencher, e, depois de os entregar com todos os dados, uma semana mais tarde recebeu uma carta em que o convocavam para uma entrevista.

O funcionário que o atendeu percebeu imediatamente que o candidato gaguejava em cada frase; também lhe chamou a atenção o constante abrir e fechar de olhos e os tiques da boca, mas mesmo assim seguiu com o interrogatório do costume. Ao perguntar-lhe porque queria ser agente da lei a resposta foi que queria sê-lo para servir o império da justiça e da ordem e poder levar a pistola à cintura, mas também porque desejava fazer parte de um corpo de homens disciplinados e com autoridade, onde reinasse a camaradagem. Nesse sentido, explicou, preferia que o deixassem fazer patrulhas com algum companheiro, pois sempre desejara ter um bom amigo com quem compartilhar o perigo e a aventura das ruas. Toda a vida ansiara pertencer a um grupo, disse, e voltou a repetir aquilo de desejar patrulhar acompanhado. Um bom amigo, um bom e valente amigo armado com pistola, como ele, insistiu. Dantes pensava que o melhor seria fazer patrulhas de moto, ainda que soubesse que os agentes íam dois a dois, aquilo parecia-lhe um pouco solitário em comparação com a visão agradável de um par de detectives partilhando o assento dianteiro de um automóvel, bebendo café de um termos e apoiando-se nos tiroteios. Fez este discurso todo de uma só vez, e até ao fim nunca mais se engasgou, mas tinha aumentado a frequência dos tiques. O funcionário escreveu qualquer coisa no papel do solicitante, depois deitou uma olhadela ao relógio de pulso e deu por terminada a entrevista.

Tão pouco o admitiram nas diferentes empresas de segurança onde se fora oferecer. Aos vinte e cinco anos decidiu actuar por sua própria conta e risco; julgava poder convencer quem o não aceitava demonstrando a sua aptidão para a vigilância: quando vissem do que era capaz de certeza lhe dariam um emprego de segurança efectivo, um uniforme, uma pistola e uma boina. Provisoriamente, utilizaria equipamento próprio: colocou no peito da camisa a estrela de xerife que guardava desde a infância; já não tinha o revólver de plástico, mas comprou uma pistola que era uma imitação perfeita das verdadeiras. Também comprou cartucheiras de autêntico couro e um cinturão largo com fivela de bronze. Calçou botas pretas, de borracha e cano alto, até aos joelhos, meteu as calças por dentro das botas, e assim equipado entrou nuns grandes armazéns para colaborar voluntariamente na segurança dos espaços de vendas.


("Muito Couro", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #7

Estava recostado na sua cama, que era a mesma dos primeiros anos. Meio corpo apoiado na cabeceira. Estava vestido com roupa de rua e calçado com os seus únicos sapatos de solas gastas. Deixava que o seu olhar, aparentemente vazio, derivasse pelo quarto.

A pintura das paredes descascara-se nos cantos, o friso que corre a poucos centímetros do ângulo com o tecto liso empalidecera por obra do tempo até se tornar quase invisível. Mas Emílio – auxiliado pela memória – conseguia ver com nitidez o coelho, a tartaruga, o ursinho, o gato e todos os outros animais que, há já tantos anos, pintara a sua defunta tia Elisa.

O coelho é o de Alice no País das Maravilhas e segura na sua mão o relógio de bolso. O gato pertence à mesma história: é o gato Cheshire, cujo sorriso (que a Emílio se afigurava diabólico) permanecia no ar sempre que o seu amo se desvanecia. Nem todos os animais são da mesma história. O ursinho,
por exemplo, donde saiu o ursinho? Da imaginação da finada tia Elisa, claro. Posteriormente todos os desenhos e pinturas que ela fez surgiram da sua imaginação… Será que a tartaruga é a mesma tartaruga artificial que imaginara Lewis Carroll? Quem sabe. O elefantezinho, sem ir mais longe, provém de outro conto: é o Dumbo. A tia Elisa baralhava as histórias: por vezes, misturava boas narrativas com outras muito fracas.

Mas o assunto é sério, disse-se Emílio. Acende um cigarro e verte um pouco de gin no copo. O assunto é sério e não se pode descurar; antes que o tempo assassino acabe de apagar o friso, ele deverá identificar que animais pertencem a Alice e quais as outras histórias. Desesperam-no essas identidades nebulosas, dão-lhe vontade de se pôr a chorar. Aliás, está a chorar, embora sem lágrimas. Bebe outro copo de gin e solta um soluço. Há quanto tempo se encontra assim, bebendo e soluçando? Talvez há um par de horas, crê. Identidades nebulosas… Pinturas nebulosas. Quando Emílio era menino as coisas eram muito claras e cada animal era o que era. A tia Elisa, que foi quem pintou o friso na parede, encarregou-se de lhe explicar quem era um e quem era outro.

A carta com a ameaça de penhora está na mesinha de cabeceira, pelo que o pior será abandonar esta casa que os seus avós construíram e, seguramente, os novos proprietários não respeitarão o friso de animais pintados pela tia Elisa: pintarão por cima e, de uma vez por todas, desaparecerá o sorriso do gato Cheshire.


("Mundossonho", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #6

Sobressaltava-se sempre ao ouvir o despertador. O aparelho tocava sempre quando Delia estava no sono mais profundo, esse que faz fronteira com a morte, acreditava ela. Mas essa crença não a atemorizava. Custava-lhe emergir daquela região pacífica e cálida. De segunda a sexta, às sete da manhã, lutava por resgatar de entre os lençóis a noção de si mesma: começava por perguntar-se onde estava. Descartava a casa da infância e os quartos de hotéis ou apartamentos em que tinha passado algumas semanas de férias. Quando por fim deixava a cama quase tinha recuperado a identidade. Depois era tudo mais fácil: o homem que dormia a seu lado era Jorge, seu marido. Tinham dois filhos, uma rapariga e um rapaz, e já estavam casados há oito anos. Jorge era um bom marido; um homem jovem, de aspecto agradável. Era apaixonado pelo seu trabalho, mas sabia ser carinhoso e divertido. Os filhos eram encantadores. Às vezes, Delia dizia que formavam uma boa família. A essa hora da manhã, sobretudo no Inverno, o quarto tinha um cheiro intenso. Era um odor pegajoso, corporal, muito tépido e muito íntimo, durava até ir para a casa-de-banho. Às sete e vinte começava a preparar o pequeno almoço e acordava Jorge e os filhos.

O autocarro escolar passava à porta às oito horas. Esperava-o com os filhos e não se ía embora até que eles subissem para o veículo. Cinco minutos depois apanhava o metro, e meia hora mais tarde entrava no emprego. Delia era secretária contabilista numa companhia de seguros. O melhor momento do dia – às onze – era a hora da sandes, que ela nunca comia – para manter a linha – mas ía ao bar da esquina e bebia um café sem açúcar. Ali podia aliviar a cabeça, costumava dizer, e ver caras diferentes como a do tipo solitário que aparentava uns trinta e cinco anos – da sua idade. Era magro e pálido, com entradas na testa como Jorge; ainda que Jorge tivesse o cabelo curto e bem penteado e o homem do bar o tivesse penteado para trás e sobre o comprido. Tinha um ar de antigo boémio, um poeta de mostruário. A essa hora bebia sempre uísque, nada de café nem nada de comer. Era impossível imaginá-lo a levar à boca um donut ou um croissant.

Em várias ocasiões ele surpreendeu-a a observá-lo. Ra­pi­damente Delia desviava o olhar, mas não podia evitar a vergonha de sentir-se apanhada. Outras vezes era ela que descobria o homem quando este a espiava. Certa manhã em que o bar estava muito cheio, e todas as mesas ocupadas, ele abordou-a para lhe perguntar se lhe permitia partilhar a sua. Delia vacilou um instante antes de aceder, e quando ele pediu o seu uísque atreveu-se a perguntar-lhe se esse era o seu pequeno almoço habitual.



("Cetim Vermelho", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

Buraco Negro #5

Noite após noite, eu evitava olhar na direcção da janela. Nunca apagava a luz, e por detrás daquele vidro a escuridão exterior era uma tela negra. Cerrava as pálpebras e tentava dormir, e, enquanto não chegava o sono, rezava.

Como me custava subtrair-me à vigília e encontrar refúgio na inconsciência do mais profundo dos sonos! Muitas noites de inverno sentia lá fora, girando em volta da casa, o gemido do vento. Em algumas ocasiões dava-me para imaginar que o vento sofria pelo seu próprio desamparo, por não lhe ser permitida a entrada nos lugares. Dava como certo que, de noite, qualquer ser, objecto ou elemento que estivesse à intempérie devia viver atormentado: de noite, o mundo exterior era um abismo terrível. Ao contrário, era tão cálido o meu quarto! Nas paredes de cor azul celeste, a mamã tinha pintado coelhinhos, girafas e elefantes. O céu sem nuvens também era azul, embora de um azul mais luminoso. Passeava os meus olhos por aquelas superfícies agradáveis e empenhava-me em afastá-los do negrume da janela desprovida de cortinas. Abraçava o meu ursinho gordalhufo, peludo e despreocupado, e então ele e eu submergíamos no amigável mundo existente debaixo dos lençóis. Mas ao fim de algum tempo tirava para fora a cabeça e não podia evitar que os meus olhos se fixassem na janela. Então, via esse rosto que cada noite assomava de um lado e se punha a espreitar. Era uma visão fugaz, pois o intruso, ao ver-se descoberto, voltava a esconder-se rapidamente entre as sombras do abismo. No entanto, ainda que não conseguisse descobrir a sua identidade, não podia deixar de ver o brilho ansioso dos seus olhos observadores. Por vezes, julguei também ver o seu braço, e o seu punho, segurando o relâmpago de uma lâmina de metal.

Nas primeiras noites gritei e chamei a minha mãe, mas deixei de o fazer ao fim de muitas reprimendas. Ela ameaçou apagar a luz se eu insistisse em inventar histórias; foi isso que ela disse.

Se alguma vez existiu algo ou alguém ali fora, eu esperei-o em vão, pois passaram muitos anos e nunca me veio procurar. Acabei convencendo-me que o que tinha julgado ver só existia na minha imaginação. Depois, tornei-me adulto e segui os trâmites traçados pela nossa espécie: casei-me e tive um filho. O meu filho também começou a ver todas as noites o rosto do espia por trás dos vidros da sua janela.
Certo entardecer saí de casa e fiquei à espera. O punhal que levava comigo daria cabo de qualquer um que tentasse assustar o meu filho. Passaram as horas e, por fim, espreitei à janela do quarto iluminado. Era enternecedor ver o meu filho abraçado ao seu ursinho de peluche. De imediato os seus olhos encontraram os meus e, antes que me pudesse esconder, nos seus consegui descobrir o terror.


("Nunca Apagava a Luz" [texto integral], in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

gente maiúscula em letras pequenas



há gente assim. ainda. gente maiúscula. e também há gente que, apesar de tocada por essa maiúscula gente, se deixa enrolar na espuma dos dias e adia os agradecimentos. ficam eles aqui, então, ainda que atrasados, a valter hugo mãe que, sem nunca nos ter conhecido, sem partilhar primos ou padrinhos connosco, está um belo dia no brasil, em fins de 2008, e olha para um livro e pensa em nós. e ao email em que no-lo conta junta, no livro que nos envia, um postal, para que não esqueçamos. que há gente assim. maiúscula.
PS: o livro é Rasif - mar que arrebenta, com bela prosa de Marcelino Freire e edição da Record.