domingo, 15 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #7

Estava recostado na sua cama, que era a mesma dos primeiros anos. Meio corpo apoiado na cabeceira. Estava vestido com roupa de rua e calçado com os seus únicos sapatos de solas gastas. Deixava que o seu olhar, aparentemente vazio, derivasse pelo quarto.

A pintura das paredes descascara-se nos cantos, o friso que corre a poucos centímetros do ângulo com o tecto liso empalidecera por obra do tempo até se tornar quase invisível. Mas Emílio – auxiliado pela memória – conseguia ver com nitidez o coelho, a tartaruga, o ursinho, o gato e todos os outros animais que, há já tantos anos, pintara a sua defunta tia Elisa.

O coelho é o de Alice no País das Maravilhas e segura na sua mão o relógio de bolso. O gato pertence à mesma história: é o gato Cheshire, cujo sorriso (que a Emílio se afigurava diabólico) permanecia no ar sempre que o seu amo se desvanecia. Nem todos os animais são da mesma história. O ursinho,
por exemplo, donde saiu o ursinho? Da imaginação da finada tia Elisa, claro. Posteriormente todos os desenhos e pinturas que ela fez surgiram da sua imaginação… Será que a tartaruga é a mesma tartaruga artificial que imaginara Lewis Carroll? Quem sabe. O elefantezinho, sem ir mais longe, provém de outro conto: é o Dumbo. A tia Elisa baralhava as histórias: por vezes, misturava boas narrativas com outras muito fracas.

Mas o assunto é sério, disse-se Emílio. Acende um cigarro e verte um pouco de gin no copo. O assunto é sério e não se pode descurar; antes que o tempo assassino acabe de apagar o friso, ele deverá identificar que animais pertencem a Alice e quais as outras histórias. Desesperam-no essas identidades nebulosas, dão-lhe vontade de se pôr a chorar. Aliás, está a chorar, embora sem lágrimas. Bebe outro copo de gin e solta um soluço. Há quanto tempo se encontra assim, bebendo e soluçando? Talvez há um par de horas, crê. Identidades nebulosas… Pinturas nebulosas. Quando Emílio era menino as coisas eram muito claras e cada animal era o que era. A tia Elisa, que foi quem pintou o friso na parede, encarregou-se de lhe explicar quem era um e quem era outro.

A carta com a ameaça de penhora está na mesinha de cabeceira, pelo que o pior será abandonar esta casa que os seus avós construíram e, seguramente, os novos proprietários não respeitarão o friso de animais pintados pela tia Elisa: pintarão por cima e, de uma vez por todas, desaparecerá o sorriso do gato Cheshire.


("Mundossonho", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

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