quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #6

Sobressaltava-se sempre ao ouvir o despertador. O aparelho tocava sempre quando Delia estava no sono mais profundo, esse que faz fronteira com a morte, acreditava ela. Mas essa crença não a atemorizava. Custava-lhe emergir daquela região pacífica e cálida. De segunda a sexta, às sete da manhã, lutava por resgatar de entre os lençóis a noção de si mesma: começava por perguntar-se onde estava. Descartava a casa da infância e os quartos de hotéis ou apartamentos em que tinha passado algumas semanas de férias. Quando por fim deixava a cama quase tinha recuperado a identidade. Depois era tudo mais fácil: o homem que dormia a seu lado era Jorge, seu marido. Tinham dois filhos, uma rapariga e um rapaz, e já estavam casados há oito anos. Jorge era um bom marido; um homem jovem, de aspecto agradável. Era apaixonado pelo seu trabalho, mas sabia ser carinhoso e divertido. Os filhos eram encantadores. Às vezes, Delia dizia que formavam uma boa família. A essa hora da manhã, sobretudo no Inverno, o quarto tinha um cheiro intenso. Era um odor pegajoso, corporal, muito tépido e muito íntimo, durava até ir para a casa-de-banho. Às sete e vinte começava a preparar o pequeno almoço e acordava Jorge e os filhos.

O autocarro escolar passava à porta às oito horas. Esperava-o com os filhos e não se ía embora até que eles subissem para o veículo. Cinco minutos depois apanhava o metro, e meia hora mais tarde entrava no emprego. Delia era secretária contabilista numa companhia de seguros. O melhor momento do dia – às onze – era a hora da sandes, que ela nunca comia – para manter a linha – mas ía ao bar da esquina e bebia um café sem açúcar. Ali podia aliviar a cabeça, costumava dizer, e ver caras diferentes como a do tipo solitário que aparentava uns trinta e cinco anos – da sua idade. Era magro e pálido, com entradas na testa como Jorge; ainda que Jorge tivesse o cabelo curto e bem penteado e o homem do bar o tivesse penteado para trás e sobre o comprido. Tinha um ar de antigo boémio, um poeta de mostruário. A essa hora bebia sempre uísque, nada de café nem nada de comer. Era impossível imaginá-lo a levar à boca um donut ou um croissant.

Em várias ocasiões ele surpreendeu-a a observá-lo. Ra­pi­damente Delia desviava o olhar, mas não podia evitar a vergonha de sentir-se apanhada. Outras vezes era ela que descobria o homem quando este a espiava. Certa manhã em que o bar estava muito cheio, e todas as mesas ocupadas, ele abordou-a para lhe perguntar se lhe permitia partilhar a sua. Delia vacilou um instante antes de aceder, e quando ele pediu o seu uísque atreveu-se a perguntar-lhe se esse era o seu pequeno almoço habitual.



("Cetim Vermelho", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

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