quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Buraco Negro #5

Noite após noite, eu evitava olhar na direcção da janela. Nunca apagava a luz, e por detrás daquele vidro a escuridão exterior era uma tela negra. Cerrava as pálpebras e tentava dormir, e, enquanto não chegava o sono, rezava.

Como me custava subtrair-me à vigília e encontrar refúgio na inconsciência do mais profundo dos sonos! Muitas noites de inverno sentia lá fora, girando em volta da casa, o gemido do vento. Em algumas ocasiões dava-me para imaginar que o vento sofria pelo seu próprio desamparo, por não lhe ser permitida a entrada nos lugares. Dava como certo que, de noite, qualquer ser, objecto ou elemento que estivesse à intempérie devia viver atormentado: de noite, o mundo exterior era um abismo terrível. Ao contrário, era tão cálido o meu quarto! Nas paredes de cor azul celeste, a mamã tinha pintado coelhinhos, girafas e elefantes. O céu sem nuvens também era azul, embora de um azul mais luminoso. Passeava os meus olhos por aquelas superfícies agradáveis e empenhava-me em afastá-los do negrume da janela desprovida de cortinas. Abraçava o meu ursinho gordalhufo, peludo e despreocupado, e então ele e eu submergíamos no amigável mundo existente debaixo dos lençóis. Mas ao fim de algum tempo tirava para fora a cabeça e não podia evitar que os meus olhos se fixassem na janela. Então, via esse rosto que cada noite assomava de um lado e se punha a espreitar. Era uma visão fugaz, pois o intruso, ao ver-se descoberto, voltava a esconder-se rapidamente entre as sombras do abismo. No entanto, ainda que não conseguisse descobrir a sua identidade, não podia deixar de ver o brilho ansioso dos seus olhos observadores. Por vezes, julguei também ver o seu braço, e o seu punho, segurando o relâmpago de uma lâmina de metal.

Nas primeiras noites gritei e chamei a minha mãe, mas deixei de o fazer ao fim de muitas reprimendas. Ela ameaçou apagar a luz se eu insistisse em inventar histórias; foi isso que ela disse.

Se alguma vez existiu algo ou alguém ali fora, eu esperei-o em vão, pois passaram muitos anos e nunca me veio procurar. Acabei convencendo-me que o que tinha julgado ver só existia na minha imaginação. Depois, tornei-me adulto e segui os trâmites traçados pela nossa espécie: casei-me e tive um filho. O meu filho também começou a ver todas as noites o rosto do espia por trás dos vidros da sua janela.
Certo entardecer saí de casa e fiquei à espera. O punhal que levava comigo daria cabo de qualquer um que tentasse assustar o meu filho. Passaram as horas e, por fim, espreitei à janela do quarto iluminado. Era enternecedor ver o meu filho abraçado ao seu ursinho de peluche. De imediato os seus olhos encontraram os meus e, antes que me pudesse esconder, nos seus consegui descobrir o terror.


("Nunca Apagava a Luz" [texto integral], in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

Sem comentários:

Enviar um comentário