domingo, 28 de fevereiro de 2010

Dois editores


Dois documentários de algo difícil acesso (esqueça quem quiser "sacá-los"...), sendo que Feltrinelli se consegue obter apenas através do ebay ou da Amazon alemãs. Mas, até por essa dificuldade de acesso e pela raridade do seu tema (editores quase nunca dão histórias que possam interessar a documentaristas), trata-se de duas verdadeiras recompensas para quem quiser conhecer a história (ou melhor, e como sempre, as histórias sem maiúscula) por trás de duas das figuras mais entusiasmantes da edição mundial dos anos de 1950 e 1960, possivelmente as duas últimas grandes décadas para se estar nisto dos livros. Essas histórias chegam-nos de forma diferente: num filme, o objecto de estudo está ainda vivo e com excelente memória (e verve), mas já nada tem do que o fez grande há 50 anos; no outro, andamos atrás de uma sombra, difícil de definir, mas que deixou um pequeno e bem palpável "império".

Obscene é, a pretexto de uma homenagem à Grove Press (cujo catálogo faz hoje parte da holding Grove Atlantic), uma viagem pela tão heróica como patética carreira de um dos maiores editores independentes americanos do século XX. Tal como James Laughlin da New Directions (outro nome à espera de um bom documentarista), Barney Rosset entrou na edição graças ao empurrão de um generoso pecúlio familiar, mas um espírito inquieto e a vontade de arriscar fê-lo fazer e perder várias fortunas até ao momento em que foi afastado (o termo é eufemístico) da editora que comprara por tuta e meia nos anos 40 e que transformara num potentado da cena indie nova-iorquina. Os anos dourados foram de 1950 a 1970, e nesses a Grove, além de fazer muito dinheiro com um catálogo que incluía a nata da vanguarda europeia e americana, a melhor banda desenhada francesa e novelas anónimas soft porn da era vitoriana, ganhou em tribunal todas as batalhas que faltavam para pôr fim à censura sobre a literatura na América: as edições de Henry Miller e D. H. Lawrence, tal como livros mais contemporâneos como Naked Lunch e Last Exit to Brooklyn foram não apenas best-sellers, como estandartes numa luta à morte pela liberdade de expressão. Daí a sua amizade e parceria pontual com Maurice Girodias, o excêntrico editor irlandês radicado em Paris que, com a sua Olympia Press, travava as mesmas batalhas na Europa.

O documentário de Neil Ortenberg e Daniel O'Connor (Arthouse Films, 90 min.) segue a estrutura das talking heads (onde até Gore Vidal acede a dar um testemunho) articuladas com material de arquivo para criar o retrato de um homem que teve quase tudo nas mãos (a Grove chegou a ter uma chancela de paperbacks a par dos seus hardbacks, coisa impossível a outras editoras independentes da altura e ainda hoje) e, ou por forças externas (uma improvável conspiração entre feministas radicais e o FBI?), ou pela força dos seus próprios demónios, acabou por deitar tudo a perder. O Rosset deste filme é já um simpático espectro do que foi, e assim o vemos entre o seu pequeno apartamento no último andar de um prédio velho na Village e uma visita a uma parcela de um vasto terreno junto à praia, que um dia ele comprara por capricho.

O mais rico e famoso editor europeu dos anos 60, que chegou a ter dois palácios em seu nome, que publicou Pasternak e Che Guevara e negociou até ao último cêntimo a autobiografia de Fidel Castro com o próprio, e que foi encontrado morto num descampado perto de Milão em 1972, com um nome falso e quilos de explosivos, é hoje uma memória vaga de tempos turbulentos, apesar da sua herança cultural estar viva e próspera. Giangiacomo Feltrinelli está ausente de Feltrinelli de Alessandro Rosseto (Pandora Film, 80 min.), mas a sua aura faz-se sentir em todos os planos deste filme. A sua história trágica está ainda no rosto do filho Carlo (autor da biografia do seu pai) e nos silêncios e pausas dos testemunhos de alguns que o conheceram. Ao contrário de Obscene, onde a história da editora é um pretexto para se tentar descobrir o homem por trás dela, aqui partimos da figura enigmática, esquiva de Feltrinelli (dos registos possíveis da sua vida e carreira, que incluem alguns filmes admiráveis feitos em Cuba) para descobrir o que dela resta nos corredores, salas de reunião e pessoas que hoje constituem uma das mais importantes editoras europeias. Rosseto filma uma espécie de diário de alguns dias de frenética actividade de Carlo, o director, e da sua mãe, Inge Feltrinelli, a "eminência parda" da editora, que incluem uma visita a Frankfurt, lançamentos de livros de Amos Oz e Doris Lessing, uma sessão de edição de texto, uma reunião na sede de livreiros da cadeia Feltrinelli, e mesmo uma visita ao cemitério onde o editor está sepultado.

O eco dos "anos de chumbo" na Itália dos anos de 1970, para os quais a actividade clandestina e a morte brutal de Feltrinelli em 1972 contribuíram com uma dose substancial de paranóia, é bem notório nas memórias de alguns dos que, no gabinete de Carlo, acedem a falar para a câmara sendo que o testemunho do primeiro livreiro da empresa, que foi também a última pessoa a falar com Feltrinelli antes da sua última "missão", dá um retrato nítido do momento mental na vida do editor "clandestino" e do país por aqueles anos. Rosseto, sabiamente, apercebe-se que definir esta personagem está acima das suas possibilidades (nem Carlo no seu excelente livro o consegue: restam excertos de cartas e ensaios e muitas perguntas do biógrafo-filho), filmando (e muito bem, a fotografia é esplêndida) com a liberdade de quem apenas está a olhar. Mesmo na última cena, em que Carmen Balcells prova que, ainda que de forma radicalmente diferente, a luta de Carlo como editor continua a herança do pai, e que se trata, de facto, de uma luta pela civilização, Rosseto sabe manter a mesura de um observador. Feltrinelli é, sobretudo, o filme sobre de um homem da palavra que descobriu que a palavra não chegava e que procurou outra solução (um pouco como Mishima pela mesma altura e num campo político oposto). Que, a dias de fazer rebentar involuntariamente os explosivos que por então aprendia a fazer, esse homem tenha tido a calma de depositar nas mãos da mulher e do filho o futuro de uma editora que pouco já lhe dizia, eis apenas mais uma peça deste puzzle para sempre incompleto.

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