"Um dos grandes impulsionadores do interesse pela fantasia foi J. R. R. Tolkien. Com a obra O Senhor dos Anéis, Tolkien colocou este subgénero literário num lugar de destaque dentro da produção ficcional contemporânea. Tolkien recupera não só o passado medieval cristão e as lendas antigas (como fizeram os românticos), mas vai mais longe, recuperando o passado mítico quer dos povos da Europa do Norte, quer dos celtas. Em 1954, nada fazia prever que uma narrativa que se baseava em textos míticos como o Kalevala ou as Eddas se tornasse num sucesso editorial que já dura há cinco décadas. O êxito imediato de O Senhor dos Anéis teve tanto de inesperado como de duradouro. Uma das consequências directas do sucesso foi o aparecimento, a partir de meados da década de sessenta, de um grande número de escritores que se dedicaram à fantasia. Muitos foram apenas imitadores menores de Tolkien, escritores sem a preparação cultural necessária para criarem verdadeira e inovadoramente dentro do subgénero literário. Outros, contudo, beneficiando do interesse comercial das editoras pelo fantástico, puderam publicar obras verdadeiramente criativas, explorando outras áreas do fantástico para além das desenvolvidas por Tolkien. Escritores como Michael Moorcock, Ursula K. Le Guin, Gene Wolfe, Roger Zelazny, entre outros, deram novos mundos à literatura fantástica contemporânea, inovando o género.
Um dos maiores problemas que um autor de literatura fantástica enfrenta (particularmente o do subgénero da fantasia) é o da comunicação efectiva da visão fantástica, o que faz com que o escritor seja obrigado a atender a um conjunto de regras estilístico-formais que raramente são alteradas. Para que uma visão fantástica possa ser comunicada, e não se reduza à expressão de uma mera ilusão ou sonho, é necessário que inclua elementos lógico-racionais que lhe dêem coerência interna e contribuam para a sensação de verosimilhança necessária para a participação do leitor nas aventuras narradas. Tendo em mente as regras que enquadram o género e evitam que uma obra caia na sucessão demente de acontecimentos irracionais, o autor tem ainda que dominar algumas técnicas narrativas e estético-literárias que caracterizam o subgénero, e que são:
1. A narrativa na terceira pessoa (preferencial, mas não obrigatória).
2. A presença de personagens com quem o leitor se identifique, fazendo, deste modo, com que ele participe na acção.
3. A inclusão de momentos de tensão seguidos de momentos de relaxamento.
4. A utilização de elementos fantásticos, impossíveis ou sobrenaturais, bem como de seres estranhos, míticos, lendários ou irreais que contribuem para a carga eminentemente simbólica da fantasia.
5. O recurso frequente a descrições pormenorizadas do espaço onde se desenrola a acção, para possibilitar uma «visualização» tão completa quanto possível do mundo imaginário.
A estas técnicas podem juntar-se outras recolhidas de géneros literários afins. O fantástico em geral, e a fantasia em particular, propõem visões alternativas e múltiplas do mundo e do homem. A carga mítico-simbólica presente nestas obras tende a apontar para um passado «mágico», o que não faz, necessariamente, com que as fantasias sejam meras nostalgias literárias, reaccionárias e escapistas. Através da recuperação e reelaboração de elementos histórico-culturais de épocas anteriores, juntamente com a activação de estruturas mentais específicas, as fantasias propõem o restabelecimento do equilíbrio psíquico perdido pela sobrevalorização da consciência e dos esquemas lógico-racionais que caracterizam a sociedade ocidental desde o século XVIII.
Ao contrário do que às vezes se pensa, a valorização da «visão fantástica» não tem por objectivo substituir a componente racional pela irracional. Não se pretende dar primazia às estruturas do inconsciente sobre as da consciência, nem tão pouco se propõe que, face aos limites evidentes das noções consensuais de realidade, estas sejam substituídas pela pura fantasia. A importância da consciência no funcionamento psíquico do homem moderno ocidental é um dado concreto inalienável, a causa primeira da sua evolução, e condição basilar da liberdade do indivíduo. As estruturas da consciência são fundamentais para o relacionamento do ser humano com o mundo que o rodeia e com os outros. Porém, a consciência não é função única no psiquismo humano, um compartimento estanque que permita ignorar tudo o resto. Do mesmo modo que o mundo não existe em função de uma espécie, a humanidade não partilha, na sua totalidade, da Weltanschauung ocidental. A realidade impõe a todo o momento o confronto com a heterogeneidade cultural, social, política, económica e religiosa como característica do mundo em que vivemos."
Excerto de A Problemática do Espaço em "O Senhor dos Anéis" de Maria do Rosário Monteiro (no prelo).
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
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