"As pessoas faziam de tudo para darem de comer aos filhos. Vendiam o que era valioso e sentimental. Matavam e cozinham animais domésticos estimados. Prostituíam-se. Prostituíam as crianças que precisavam de ser alimentadas. Roubavam, eram coniventes e matavam. Faziam as mulheres passar fome. Elas próprias passavam à fome.
Tantas vezes, uma dúzia de vezes, foi-me dito o quão sortudo era por não ter filhos, como era mais fácil para nós, com poucas bocas para alimentar, não ter de ouvir os gritos horrorosos, não ter de ver aqueles que amamos mais do que tudo, aqueles que dependem somente de nós, a sofrer. Oh, a responsabilidade, diziam as pessoas. E eu pensava, oh, a claridade.
Eu ansiava pela lucidez da paternidade durante os maus tempos – talvez na mesma medida que Alena tinha ansiado pelo amor e o doce cheiro de um bebé antes de os tempos se tornarem maus.
O território moral sombrio no qual caminhava ter-se-ia tornado uma paisagem inteiramente diferente com crianças. Quem culpa um pai por roubar se é para alimentar o filho pequeno? Um pai diz a si próprio: eu faço o que tenho de fazer para que a minha criança sobreviva a este tempo. Os pais podem fazer tudo o que lhes aprouver e dizer: temos que ter a certeza de que os nossos filhos sobrevivem, e nós temos que sobreviver para cuidar deles.
Eu não me podia dar a esse luxo. Não importava se vivesse, nem mesmo para mim. Mas não podia suportar a dor que existia entre mim e a morte. Era essa fome cinzenta, e não a própria morte, que temia, que evitava a custo de toda a honra. Como os políticos mais inteligentes sabem e repetem, os ideais nada são para o homem que se senta a uma mesa vazia."
Dilemas morais e sobrevivência na Leninegrado sitiada de 1941-43, recordados, muitos anos depois e em Nova Iorque, por um cientista com um terrível segredo. Eis Fome, um livro de Elise Blackwell , de que J. M. Coetzee disse em 2003 ser um dos melhores livros que já lera. Para breve, com tradução de Safaa Dib.
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