quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Panorama pálido, debate animado

Na sessão de dia 27 de "Com Todas as Letras", a série de debates que têm vindo a ser organizados pela Os Meus Livros e pela SPA, o editor Pedro Reisinho esteve, teremos de referi-lo, em clara desvantagem à partida. Na mesa com Luís Corte-Real (editor da Saída de Emergência) à sua esquerda e com David Soares e João Seixas à sua direita (respectivamente, autor e colaborador pontual da Saída de Emergência), o editor da Gailivro podia queixar-se de um alinhamento em seu desfavor neste debate sobre a edição de ficção científica, horror e fantástico. A seu favor, como todos o sabemos, os números dos tops e das vendas astronómicas.

Se bem que tenham aberto o debate em concordância, com uma leitura trágica das possibilidades de sucesso financeiro da edição de FC em Portugal (Reisinho terá mesmo confessado que a publicação de autores portugueses do género, como Telmo Marçal ou João Barreiros, é feita já com a expectativa de fraquíssimas vendas, quase uma edição de "caridade"), confessando ainda ambos que a FC que publicam é paga com as receitas das vendas de títulos de géneros bem mais rentáveis, a divergência entre os dois editores começou a tornar-se evidente. Mais directo e realista, Corte-Real via-se secundado pelas boas prestações de Soares e Seixas (que chegou a trazer uma pequena estatística que provava o real declínio da edição de FC por cá) na fixação de um panorama da publicação e da recepção nacionais aos géneros em causa. A desvantagem do alinhamento pesou então sobre Reisinho, que, acompanhado apenas de 2 exemplares de livros seus e recentemente lançados (um livro de contos de Telmo Marçal e um romance de Octávio dos Santos), se limitou à possível defesa do seu catálogo, mesmo quando a qualidade das obras de Stephanie Meyer, por exemplo, foi dura e repetidamente atacada tanto por David Soares como por João Seixas.

Por intermédio de uma pergunta vinda de um aluno de Belas-Artes na assistência (que foi compondo o auditório até quase o encher, uma boa surpresa para os pessimistas), a conversa orientou-se para a qualidade das capas e do grafismo na FC em Portugal, e aí uma certa impreparação de Reisinho foi subitamente notória: interrogado por mim quanto ao facto de a Gailivro ter colocado na capa do livro de Marçal uma imagem da série A Quinta Dimensão sem qualquer creditação ou menção da fonte da imagem (algo que eu descobrira e apontara aqui), o editor, além de confessar não saber que a imagem era da série, não se lembrava sequer de que essa menção não estava assinalada no livro. O meu argumento era (e é) que a "nobilitação" de um género passa também pela assunção de uma genealogia iconográfica e pela sua devida (e até orgulhosa) menção nos livros publicados. Apesar destas fraquezas na preparação para o debate, e de um alinhamento claramente desfavorável, creio, contudo, que Pedro Reisinho se defendeu de forma desportiva e, quando foi imperativo, sensata, ao reconhecer (perante a insistência de João Morales, o moderador) que a creditação na ficha técnica teria sido aconselhável no caso do livro de Marçal.

Em suma, um debate muito vivo, directo, alargado (poucas vezes me lembro de ouvir, neste tipo de evento übber-literários, uma tão boa discussão sobre o design editorial, no caso da FC), com boas intervenções do público (Ricardo Loureiro e António de Macedo, por exemplo). Talvez o pessimismo inicial dos dois editores na mesa, os líderes na publicação destes géneros em Portugal, possa ser revertido.
(PM)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

J. M. Coetzee sobre Hunger

"In Elise Blackwell’s original and engrossing short novel, Leningrad during the German siege forms the background for an exploration of love and betrayal, as well as for some richly sensual evocations of the pleasures of eating." J. M. Coetzee

Fome, de Elise Blackwell

"As pessoas faziam de tudo para darem de comer aos filhos. Vendiam o que era valioso e sentimental. Matavam e cozinham animais domésticos estimados. Prostituíam-se. Prostituíam as crianças que precisavam de ser alimentadas. Roubavam, eram coniventes e matavam. Faziam as mulheres passar fome. Elas próprias passavam à fome.

Tantas vezes, uma dúzia de vezes, foi-me dito o quão sortudo era por não ter filhos, como era mais fácil para nós, com poucas bocas para alimentar, não ter de ouvir os gritos horrorosos, não ter de ver aqueles que amamos mais do que tudo, aqueles que dependem somente de nós, a sofrer. Oh, a responsabilidade, diziam as pessoas. E eu pensava, oh, a claridade.

Eu ansiava pela lucidez da paternidade durante os maus tempos – talvez na mesma medida que Alena tinha ansiado pelo amor e o doce cheiro de um bebé antes de os tempos se tornarem maus.
O território moral sombrio no qual caminhava ter-se-ia tornado uma paisagem inteiramente diferente com crianças. Quem culpa um pai por roubar se é para alimentar o filho pequeno? Um pai diz a si próprio: eu faço o que tenho de fazer para que a minha criança sobreviva a este tempo. Os pais podem fazer tudo o que lhes aprouver e dizer: temos que ter a certeza de que os nossos filhos sobrevivem, e nós temos que sobreviver para cuidar deles.

Eu não me podia dar a esse luxo. Não importava se vivesse, nem mesmo para mim. Mas não podia suportar a dor que existia entre mim e a morte. Era essa fome cinzenta, e não a própria morte, que temia, que evitava a custo de toda a honra. Como os políticos mais inteligentes sabem e repetem, os ideais nada são para o homem que se senta a uma mesa vazia."

Dilemas morais e sobrevivência na Leninegrado sitiada de 1941-43, recordados, muitos anos depois e em Nova Iorque, por um cientista com um terrível segredo. Eis Fome, um livro de Elise Blackwell , de que J. M. Coetzee disse em 2003 ser um dos melhores livros que já lera. Para breve, com tradução de Safaa Dib.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A leitora que disse "chega"



"O ultimo livro de
Lázaro Covadlo, editado pela Livros de Areia, andava-me a perseguir desde o momento em que saiu. Naquela tarde disse 'chega', sentei-me e resolvi o assunto. É, sem qualquer dúvida, o melhor conjunto de contos que li nos últimos tempos." Quem escreveu estas linhas sobre BURACOS NEGROS foi a Eduarda Sousa no seu blogue, que teve ainda o amável descaramento de o recomendar ao Jorge Fallorca. E quem somos nós para dizer que a Eduarda não tem razão?

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

J. R. R. Tolkien e a fantasia

"Um dos grandes impulsionadores do interesse pela fantasia foi J. R. R. Tolkien. Com a obra O Senhor dos Anéis, Tolkien colocou este subgénero literário num lugar de destaque dentro da produção ficcional contemporânea. Tolkien recupera não só o passado medieval cristão e as lendas antigas (como fizeram os românticos), mas vai mais longe, recuperando o passado mítico quer dos povos da Europa do Norte, quer dos celtas. Em 1954, nada fazia prever que uma narrativa que se baseava em textos míticos como o Kalevala ou as Eddas se tornasse num sucesso editorial que já dura há cinco décadas. O êxito imediato de O Senhor dos Anéis teve tanto de inesperado como de duradouro. Uma das consequências directas do sucesso foi o aparecimento, a partir de meados da década de sessenta, de um grande número de escritores que se dedicaram à fantasia. Muitos foram apenas imitadores menores de Tolkien, escritores sem a preparação cultural necessária para criarem verdadeira e inovadoramente dentro do subgénero literário. Outros, contudo, beneficiando do interesse comercial das editoras pelo fantástico, puderam publicar obras verdadeiramente criativas, explorando outras áreas do fantástico para além das desenvolvidas por Tolkien. Escritores como Michael Moorcock, Ursula K. Le Guin, Gene Wolfe, Roger Zelazny, entre outros, deram novos mundos à literatura fantástica contemporânea, inovando o género.

Um dos maiores problemas que um autor de literatura fantástica enfrenta (particularmente o do subgénero da fantasia) é o da comunicação efectiva da visão fantástica, o que faz com que o escritor seja obrigado a atender a um conjunto de regras estilístico-formais que raramente são alteradas. Para que uma visão fantástica possa ser comunicada, e não se reduza à expressão de uma mera ilusão ou sonho, é necessário que inclua elementos lógico-racionais que lhe dêem coerência interna e contribuam para a sensação de verosimilhança necessária para a participação do leitor nas aventuras narradas. Tendo em mente as regras que enquadram o género e evitam que uma obra caia na sucessão demente de acontecimentos irracionais, o autor tem ainda que dominar algumas técnicas narrativas e estético-literárias que caracterizam o subgénero, e que são:

1. A narrativa na terceira pessoa (preferencial, mas não obrigatória).
2. A presença de personagens com quem o leitor se identifique, fazendo, deste modo, com que ele participe na acção.
3. A inclusão de momentos de tensão seguidos de momentos de relaxamento.
4. A utilização de elementos fantásticos, impossíveis ou sobrenaturais, bem como de seres estranhos, míticos, lendários ou irreais que contribuem para a carga eminentemente simbólica da fantasia.
5. O recurso frequente a descrições pormenorizadas do espaço onde se desenrola a acção, para possibilitar uma «visualização» tão completa quanto possível do mundo imaginário.

A estas técnicas podem juntar-se outras recolhidas de géneros literários afins. O fantástico em geral, e a fantasia em particular, propõem visões alternativas e múltiplas do mundo e do homem. A carga mítico-simbólica presente nestas obras tende a apontar para um passado «mágico», o que não faz, necessariamente, com que as fantasias sejam meras nostalgias literárias, reaccionárias e escapistas. Através da recuperação e reelaboração de elementos histórico-culturais de épocas anteriores, juntamente com a activação de estruturas mentais específicas, as fantasias propõem o restabelecimento do equilíbrio psíquico perdido pela sobrevalorização da consciência e dos esquemas lógico-racionais que caracterizam a sociedade ocidental desde o século XVIII.

Ao contrário do que às vezes se pensa, a valorização da «visão fantástica» não tem por objectivo substituir a componente racional pela irracional. Não se pretende dar primazia às estruturas do inconsciente sobre as da consciência, nem tão pouco se propõe que, face aos limites evidentes das noções consensuais de realidade, estas sejam substituídas pela pura fantasia. A importância da consciência no funcionamento psíquico do homem moderno ocidental é um dado concreto inalienável, a causa primeira da sua evolução, e condição basilar da liberdade do indivíduo. As estruturas da consciência são fundamentais para o relacionamento do ser humano com o mundo que o rodeia e com os outros. Porém, a consciência não é função única no psiquismo humano, um compartimento estanque que permita ignorar tudo o resto. Do mesmo modo que o mundo não existe em função de uma espécie, a humanidade não partilha, na sua totalidade, da Weltanschauung ocidental. A realidade impõe a todo o momento o confronto com a heterogeneidade cultural, social, política, económica e religiosa como característica do mundo em que vivemos."

Excerto de A Problemática do Espaço em "O Senhor dos Anéis" de Maria do Rosário Monteiro (no prelo).