terça-feira, 17 de março de 2009

Buraco Negro #11

Também recordo com nitidez as palavras da parteira quando me resgatou do interior da minha mãe: “este menino é um monstro!”, disse ela.

– Mas como podes acreditar que te lembras dessas palavras? Por favor, Félix, acabavas de nascer! O que tu dizes não concorda com a realidade – falava-me assim aquela psicóloga a que me levaram aos treze ou catorze anos. Falam sempre da realidade os doutorzecos. Sabem eles, por acaso, o que é a rea­lidade?

Não obstante, devo admitir que a parteira dizia a verdade: eu era um monstro. Ao nascer tinha cometido o erro de mostrar-me tal qual era, por isso no meu rosto de recém-nascido reflectiu-se o ódio acumulado (na etapa fetal) com que cheguei ao mundo, bem como toda a perversão da estirpe mais além dos meus progenitores; porque estou convencido que semelhante maldade vinha desde antepassados muito antigos, e essa emoção tão intensa e genuína teve, durante o período da minha gestação e desenvolvimento, tempo de sobra para formatar as minhas feições.
Imediatamente percebi que com aquela expressão na cara as coisas me correriam mal, mesmo muito mal, e foi essa a razão pela qual, com instintiva astúcia, compus uma careta que me fazia parecer um bom menino. Mantê-la dava-me muito trabalho, um esforço vigoroso, tenaz e continuado dos músculos faciais, mas não tinha outro remédio senão suster tal máscara se me queria proteger. Pelos vistos fiz o que devia fazer, e, mesmo assim, fi-lo bem.

– Claro que é um bebé lindo! – disse a auxiliar da parteira.

– Sim, sim, é verdade! É que, por momentos, pareceu-me muito feio – explicou a parteira.

Tinha ganho a minha primeira batalha, mas sabia que no futuro não podia afrouxar. E não afrouxei durante muito tempo, pelo menos não o fiz na presença dos outros.Permanecia sempre com os músculos tensos para evitar que as minhas feições recuperassem as suas formas originais. Semelhante esforço muscular acarretou ao meu organismo algumas indesejadas consequências, em especial no respeitante ao sistema digestivo: o trânsito de alimentos era lento, e, na última etapa, árduo e doloroso. Mas estava resignado, sabia que devia sacrificar alguma coisa para evitar que me descobrissem."

("Preparação para o Abismo", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)

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