“E com aquela cena terminava verdadeiramente a película, de modo que se acenderam as luzes por um curto momento, mas a ténue claridade artificial durou o suficiente para que Bernardo pudesse olhar à sua volta. Estavam na sala uns quantos homens mais, talvez dez ou doze, todos patéticos. E eu, como me verei, perguntou-se Bernardo.
As luzes voltaram a apagar-se e iniciou-se a projecção seguinte. No ecrã aparece um barco que navega mar adentro. Plano afastado: dia. Agora o barco aproxima-se da câmara: bom trabalho de zoom. O recorte do navio é muito parecido com o do Neptuno II. Agora vê-se, detalhadamente, o casco e pode ler-se o nome do navio: Neptuno II. É mesmo o Neptuno II? Sim, é isso que se lê. Então, o nosso barco foi utilizado para fazer um filme pornográfico!, descobriu Bernardo. Sorri e pensa como se divertirá Clara Luz quando ele lhe contar. Sequência dois: o barco está atracado; a câmara foca a coberta e mostra um homem e uma mulher que discutem com palavras azedas. Parecem-se com ele e com Clara Luz, são demasiado parecidos. Bernardo começa a mexer-se e pensa que a sua imaginação lhe está a pregar uma partida de mau gosto. Cuidado, nada de nervosismos, Bernardo! Calma, foi o que o médico te recomendou: sempre muita calma.
O barco atraca e no seguimento descem os passageiros; Bernardo vê-se a si próprio: está a sair do barco e na sua cara brilha a ira. A câmara foca Clara Luz, que está no convés, apoiada no corrimão, e observa como ele se afasta em passo rápido pelo molhe. Há lágrimas nos olhos de Clara Luz. Menos mal! Ela está arrependida, pensa Bernardo. De repente a câmara descobre um meio sorriso malévolo na cara da sua amante. Era mesmo ou é de novo a sua imaginação? Calma, Bernardo, muita calma.
Novas sequências: a câmara segue-o até ao posto fronteiriço, retrata-o no seu nervosismo enquanto espera a sua vez para passar para o outro lado da cancela e mostra-o com um gesto de contrariedade quando o guarda aceita a sua documentação. Vê-se agora no parque sentado no banco, por baixo da palmeira. Aparece o pretinho. Engraxa-lhe os sapatos. Condu-lo ao cinema, o mesmo cinema onde se encontra neste preciso momento. Isto é insólito, diz-se Bernardo. Decide que irá à bilheteira e que pedirá para falar com o dono do cinema para lhe exigir uma explicação, mas não consegue descolar-se da cadeira. Agora vê-se a si próprio sentado na cadeira. E uma nova sequência: outra vez o Neptuno II. A câmara foca o camarote que partilha com Clara Luz. Ali está ela. Apenas se encontra coberta por um robe transparente, desses que ele supõe venderem-se em lojas de lingerie para mulheres frívolas; de resto, está nua. E não está sozinha: há um homem."
("Buracos Negros", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)
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