terça-feira, 17 de agosto de 2010

Entrevista a Elise Blackwell



Eis uma entrevista a Elise Blackwell, autora de FOME.

Quando é que surgiu a ideia de escrever FOME?
Depois de fazer uma pós-graduação dei por mim a viver numa propriedade perto da fronteira mexicana, entre San Diego e Tijuana. Ajudei a tratar das árvores de frutos que já estavam plantadas e ajudei também a plantar vegetais e outras plantas. Juntei-me ao Seed Savers Exchange, que é um grupo de agricultores e jardineiros de todo o mundo que trocam sementes raras e antigas. Foi numa das suas publicações que descobri a história do que se tinha passado no Instituto Vavilov durante a II Guerra Mundial. Havia uma foto do herbário do Instituto, com armários de madeira e filas de gavetas estreitas. Lembrava-me as salas onde passei grande parte da minha infância. Mas o que me causou grande impressão foi a foto de Vavilov tirada na prisão. Quando a vi soube que iria escrever um livro sobre o seu trabalho.



O facto de ambos os seus pais serem botânicos foi importante na escolha da história?
Talvez mais do que eu queira admitir, mas teve, pelo menos, alguma importância. Embora não conhecesse a história dos cientistas que tinham morrido para proteger o seu trabalho, tinha sabido de Nikolai Vavilov pelos meus pais. E, por causa deles, também conheci outros biólogos e assisti às suas reuniões. O meu conhecimento do tipo de trabalho que eles fazem ajudou muito, estou certa, sobretudo porque estava a escrever sobre um local tão longínquo.

O narrador sem nome é um personagem muito frio, clinicamente objectivo, quase destituído de paixão dir-se-ia. É também um mulherengo e, quando a situação se torna difícil, não tem quaisquer problemas em fazer o que os seus colegas e a sua mulher prometeram não fazer. Para uma mulher estreante na ficção, foi um grande desafio escrever uma personagem assim?
Vou contar um segredo: Fome não foi a primeira novela ou romance que escrevi, apenas a primeira que foi publicada. Ainda assim, sei que há uma tendência, mesmo em romancistas que já publicaram um primeiro livro, de se basearem em material autobiográfico, mas aqui estava eu a pegar num narrador tão distante da minha própria identidade e experiência de vida quanto possível. Ainda que não me considere fria nem tenha uma mentalidade “clínica”, acabei por desenvolver uma espécie de simpatia por ele, em parte graças a ligações que me obriguei a fazer. (Por exemplo, a sua fruta favorita é a minha também: a manga). Também acabei por admirar o seu desejo de experimentar. Pode ter uma mentalidade clínica mas tem uma paixão pela vida, o que no seu caso, claro, inclui comida e mulheres. Num outro tempo e num outro lugar, talvez tivesse provado ser alguém mais honrado, mas a sua coragem é apenas física e não moral ou psíquica.

As duas mulheres na vida do cientista, Alena e Lídia, são muito diferentes uma da outra, quase opostas. Será que poderíamos considerá-las como espelhos para os dois lados dessa personagem, o homem racional com Alena e o homem de apetites com Lídia?
Não decidi, de forma consciente, escrevê-las assim, mas acho que poderia concordar com essa análise. E, na verdade, esses dois lados existem em todos nós. Vejo Alena – pelo menos a versão dela que é idealizada pelo narrador – como a pessoa que ele gostaria de ser. É totalmente racional, e nunca tem qualquer dúvida sobre se irá ou não fazer o que está certo. (Acho realmente que a idealização que o narrador faz de Alena e do seu sacrifício o impede de dar valor às emoções dela, em particular no episódio da criança, a Albertine). A Lídia é a pessoa que ele receia bem ser: uma sensualista egocêntrica. Tal como o narrador, ela raramente se nega o que deseja e é também uma espécie de coleccionadora, quer seja de plantas ou de homens. No fim, ele descobre que pode também tê-la subestimado um pouco.

Com a ameaça de demolição da estação experimental de Pavlovsk, que poria um fim à colecção de sementes de Vavilov, acha que a Leninegrado de 1942-43 está já no processo de se transformar numa outra Babilónia, num outro nome do passado, belo mas sem sentido (tal como Paul Valéry escreve no poema que usou como epígrafe do livro)?
Ainda tenho alguma esperança no que toca à estação de Pavlovsk, agora que o presidente Medvedev prometeu uma investigação. Mesmo que o bulldozer arrase Pavlovsk – por muito horrível que isso possa parecer – não se trata de toda a colecção Vavilov. Um sinal promissor é que Vavilov é ainda um herói para muitos russos. O seu nome e o seu trabalho ainda fazem sentido, ainda mexem com as emoções. Por isso, talvez ainda não Babilónia, mas essa palavra, “Babilónia”, serve para nos lembrarmos que civilizações inteiras, apesar de ricas e complexas, podem ser obliteradas. Há muito bom trabalho a ser feito no campo da defesa das sementes, e o Silo de Svalbard na Noruega alberga agora meio milhão de sementes, mas muito do que se vê a ser feito na agricultura por todo o mundo sugere que a nossa civilização não planeia estar cá para sempre. Mas paro aí, porque sou uma romancista e não uma cientista ou uma futurologista.

© Livros de Areia Editores, 2010

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