“Na última noite de 1976, numa luxuosa mansão rodeada de jardins e guardada por homens de uma eficiente companhia de segurança, na zona residencial da Grande Buenos Aires, festejava-se a passagem de ano. Por trás do portão encontravam-se automóveis topo de gama. Os chóferes e os guarda-costas permaneciam junto dos veículos e desfrutavam do champanhe que, por meio dos empregados, os seus patrões lhes faziam chegar da cozinha. Os seguranças sabiam que os seus patrões festejavam a morte do ano, mas ignoravam que, ao mesmo tempo, celebravam antecipadamente o fim de uma etapa política e o início de outra: dentro de poucos meses aumentaria a intensidade do incêndio de dor e morte que já há algum tempo calcinava o país.
Aristides Storni era o dono da casa, e muito mais tarde recordou aquela noite como um momento especial da sua vida, uma vez que no decurso do serão julgou ter alcançado o cume do seu poder. Não sabia, todavia, que subiria ainda mais na escala social e na da infâmia, mas ao ver-se rodeado por tantos amigos poderosos, que não paravam de elogiar o seu desempenho no mundo das finanças, custava-lhe imaginar uma cota mais alta para a sua ambição. Havia, entre a pequena multidão de empresários, políticos e militares, acompanhados pelas suas apresentáveis esposas, uma quantidade de personagens que ele nem sequer conhecia, o que justificava as suas suspeitas de que entre estes poderia ter-se infiltrado o Agente do Mal, que não voltara a ver desde aquela longínqua madrugada de primavera, em Mar del Plata.
Aristides Storni acreditou na possibilidade de o seu contratante se encontrar ali – assumindo a identidade de qualquer um dos presentes – para apreciar com olhar de dono os frutos do seu labor. Muito embora, claro, o trabalho não tivesse sido só de Aristides: quase todos os presentes na festa tinham contribuído para expandir a iniquidade e o sofrimento.
No entanto, nesta festa ninguém mencionava nada que pudesse relacionar-se com temas desagradáveis: as senhoras comentavam as suas futuras férias e os homens falavam de desporto. Brindava-se a todo o momento: pelo novo ano e pela nova vida, pela prosperidade e a saúde, e Aristides devia ser o único que a cada brinde dizia interiormente: caos, obscurantismo e morte. E também: sofrimento, mentiras e esquecimento, porque pensava que o Agente do Mal, se é que vadiava por ali ou estava em qualquer outro lugar, não podia (como Deus) deixar de ouvir os seus pensamentos; e se tais pensamentos o satisfizessem, continuaria enchendo-o de bens, mais bens e mais poder, se isso fosse possível. E enquanto saudava uns e outros e brindava com todos, observava de soslaio o dissimulado brilho do olhar de cada um, para se certificar de que entre eles estaria o seu benfeitor e dono."
("As Correntes do Mal", in Buracos Negros de Lázaro Covadlo, tradução de F. J. Carvalho)
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