segunda-feira, 6 de julho de 2009

Férias com Feltrinelli e Girodias: uma sugestão


Descobri que livros sobre editores (note-se: não sobre edição), memórias ou biografias ou monografias sobre casas editoriais, são viciantes. Por mais monótona e padronizada que possa parecer a actividade vista de fora, há sempre surpresas escondidas nestas páginas, e raramente derivam do que se possa esperar, ou seja, do brilhantismo e excentricidade dos "autores": são os próprios biografados que surgem, mesmo sem grande esforço dos biógrafos, e apenas pela força dos factos, como figuras extraordinárias.
É o caso destas duas sugestões de leitura, dois livros que comprei ao desbarato no ebay (fora os portes, o conjunto ficou por 2 USD, ou seja, perto de 1.40 EUR) e que são uma porta inesperada para duas histórias de edição que desconhecia em detalhe (Girodias) e na totalidade (Feltrinelli).

Que a história da Olympia Press de Maurice Girodias era curiosa, já o sabia: foi, afinal de contas, o único editor com coragem suficiente para avançar com a primeira publicação de Lolita de Vladimir Nabokov em 1955. Acontece que este The Good Ship Venus de John St. Jorre (sim, o nome do autor é mesmo este; não se trata de um dos famosos noms de plume do catálogo da Olympia), publicado pela Pimlico, revela uma das mais incríveis odisseias na história da edição, a de uma casa sediada em Paris que publicava em inglês (na senda da Obelisk do seu pai, Jack Kahane, e da Shakespeare & Company de Sylvia Beach), que, para a maioria, não passava da editora de dirty books mais famosa ou infame (o termo parece ter sido inventado e usado com gosto pelo próprio Girodias, talvez antecipando o seu uso pelos juízes), mas que, à custa do dinheiro ganho com esse nicho, publicou, além de Lolita, os romances de Samuel Beckett, Naked Lunch de William Burroughs, The Ginger Man de J.P. Donleavy, Candy de Terry Southern, e a 1.ª edição em inglês da Story of O de Pauline Reage (e se querem saber quem foi ela realmente, este é o livro certo), para não falar de obras de Henry Miller e Lawrence Durrell. Os capítulos sobre a publicação de Lolita, Naked Luch e Ginger Man valem o peso em ouro (e Nabokov não sai muito bem na fotografia final). St. Jorre está visivelmente fascinado pelo seu "herói" mas isto não é uma hagiografia: recorrendo a uma documentação extensa, cria uma polifonia de vozes antagónicas que dá uma imagem ricamente texturada de um editor relutante no pagamento de royalties e traduções, que passou metade da vida em tribunal (e que, notoriamente, retirava algum prazer disso), e que perdeu a sua editora precisamente num tribunal (os detalhes só lidos mesmo: contados não se acredita...). Quanto aos dirty books propriamente ditos, publicados na série Traveller's Companion de discreta capa verde? Nos seus autores (sob pseudónimo) havia nomes depois famosos como Alexander Trocchi ou Norman Rubington, mas havia também turistas americanas em dificuldade financeira, homens de negócios ingleses, jovens escritores desconhecidos em busca de sustento e até uma jovem paquistanesa cosmopolita, descrita por Girodias assim:

"She always wore flowing silk saris, her hair, thick and braided, had never been cut or coiffed, she was modest, beautiful, patient, polite and draped in veils as she handed us the not-so-innocent product of her cultivated mind. She was, in every way, what my father and I had dreamed a pornographer should be." (p. 58)

Se a história de Girodias é a de um dandy libertino e culto, que prosperou enquanto as leis censórias não foram abolidas em Inglaterra e nos EUA, e que sabia reconhecer e lutar por um bom livro quando o encontrava, a história de Giangiacomo Feltrinelli (Harcourt) é, apesar de explicável pelas contingências culturais da sua época (os anos de 1960 e o pós-1968), talvez a mais radical história da edição do século XX, a de um homem que viveu para o culto e a difusão da palavra impressa e que a certo ponto achou que a palavra não chegava e se preparou para a acção (poder-se-ia traçar um paralelo com o trajecto de Mishima).
Os factos são, por si, espantosos: herdeiro de uma fortuna considerável, Feltrinelli cria a sua casa editorial nos anos de 1950 e no final da década comete a proeza do século: clandestinamente, vai à Rússia resgatar o manuscrito de Dr. Jivago (mas não o seu autor) e, por acordo com Pasternak, torna-se o detentor dos direitos mundiais deste romance. Podem fazer as contas. Anos depois, após o pico da Crise dos Mísseis, está em Havana para assegurar os direitos das memórias de Fidel Castro, o que lhe garante, em 1967, acesso ao inner circle dos rebeldes na selva boliviana (Feltrinelli chega a estar preso em La Paz) , e os direitos mundiais (assegurados pessoalmente por Castro) do Diário de Che Guevara. Podem de novo fazer as contas. Milionário, cada vez mais bem sucedido como editor, ele volta da sua última estada em Cuba um homem diferente: já não é o editor, porque descobre que os livros não terão nunca a força das armas. Com uma amante a quem conta pouca coisa, faz um périplo secreto por África e procura aliados, e, em Itália, radicaliza gradualmente a sua posição política (chega a planear a sublevação da Sardenha, "uma Cuba mediterrânica"). Entra na clandestinidade e desaparece. A 14 de Março de 1972 é encontrado morto junto a um engenho explosivo que teria tentado colocar num posto de transformação eléctrica perto de Milão: os "anos de chumbo" tinham chegado.
Escrito pelo filho Carlo, poderíamos mais uma vez pensar estarmos perante um relato hiperemotivo e factual e analiticamente débil. Erro: Carlo é de uma candura e uma frieza extrema, referindo-se ao seu pai sem o uso do possessivo e procurando dá-lo a conhecer através de documentos escritos e depoimentos de terceiros (os episódios cubanos e latino-americanos são, como é óbvio, absolutamente preciosos, criando uma imagem vívida dos anos cruciais do século XX).

Dois livros sobre um certo tipo de editores cujo molde se perdeu há muito, e que são um refrescante antídoto da actual obsessão com a edição "profissionalizada" e gerida em holdings por "CEOs".
(PM)

1 comentário:

  1. Olá Pedro!

    Dizes, a propósito de Girodias, que no seu catálogo de autores se podiam encontrar jovens autores desconhecidos em busca de sustento. Um desses autores acabou por se tornar um dos nomes mais importantes (e desconhecidos) da Ficção Científica: o Barry N. Malzberg que, entre 1968 e 1973 publicou 2 hardcovers e 8 paperbacks na Olympia Press America, e que viria ser conhecido como o Girodia's Best Writer.

    E, numa breve memória escrita em 1989, conta coisas fascinantes sobre o Girodias, que, a par do génio editorial contra-intuitivo, ele descrevia dizendo "He had a crazy, a manifest, a royal physical courage; (...)a true general's detachment, an indifference to consequence founded upon metaphysic." E acrescenta: "Amusing and interesting were his favourite attitudes".

    Depois de ele ter publicado o "Oracle of the Thousand Hands", o Girodias pediu-lhe que escrevesse um livro baseado numa ideia sua, sobre um homem apaixonado pelo cinema e que, por um qualquer motivo, acabava a fazer amor com todas as actrizes famosas da época. A ideia tinha sido rejeitada por todos os autores a quem ele pedira que lha escrevessem. E a recomendação do Girodias? "Use their real names." Elizabeth Taylor, Doris Day, Brigitte Bardot, Sophia Loren... "I want scandale, without scandal this can not work. (...) I'll give you a clause protecting you against lawsuits. I love lawsuits".

    Foi, de facto, um editor que praticamente já não tem lugar nas editoras que têm é que se preocupar em ter lucro e mais lucro, mesmo publicando lixo.

    Quando o Malzberg lhe entregou o livro, a reacção do Girodias seria impensável nos nossos modernos editores: "You son of a bitch. (...) I ask you this time for pornography, a simple work of pornography, give you a plot and everything and ask you to keep it simple and low-class, I publish one book for you and ask you to do this for me and what do you do? You give me forty pages which are beautiful, just beautiful, you even know the color of that one's bush how you tell that? and then what do you give me? You give me horse-racing, you give me existentialism, you give me despair! You give me terrible anxiety and depression! You give pain and thwrted desire! This book will sell 400 copies, I have to publish it hardcover too because in paperback everyone will throw it away; I have to publish it because it is a masterpiece, but you destroy me, do you understand?"

    De acordo com o Malzberg, vendeu 350...

    O Girodias foi um daqueles beautiful loosers, como diria o Cohen, que fez história sendo - segundo alguns padrões - um editor inconpetente e amador. Mas prefiro um editor assim, do que quinhentos editores-merceeiros.

    Abraços,

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